Nós outros Milton.

… ali estava o espelho. Nele, a sombra de mim contra o reflexo. Milton brincava com a luz detrás de meus cabelos, fazendo sombra sobre o eu no espelho, uma segunda sombra, e no espelho, apenas dele: o reflexo.

Nos meus olhos, no espelho, eu vi ele. Minha sombra abraçava seu reflexo, e a sombra dele fundia-se no meu convexo.

“Quem é você?” perguntei-me olhando para ele, nos meus olhos meus. Intui um eco como de quem está ausente. Nele, aquela ausência de se fazer presente. Em mim, como de quem quer desaparecer para sempre.

“A vida é feita por aquilo que sentimos na pele,… ” era a voz de Milton, ecoando nas salas vazias sem móveis nem livros de uma casa recém ocupada. Lá fora, o mundo era feito de pessoas que trabalhavam incessantes e omissas, sem olhar para a poesia que era estar vivos. Apenas respiravam como recurso da sobrevivência “ … e aquilo que escutamos e que tocamos”.

Nem eu, nem Milton existiamos para esse tipo de gente. Éramos coisa de outro século ou até de outra espécie: ler um livro sentado na grama, cheirar discreto o ventre de uma flor, esperar alguns minutos pelo pôr deste sol.

Pela janela dava para acompanhar os passos apressados de uma cidade que nascia de noite. Soluços rangidos, a língua sempre oculta, a boca torta, e os olhos fechados. Minha sombra se esticou no asfalto, jorrando umas listras escuras na luz alaranjada.

Milton apareceu por perto, trás minha forma encolhida na borda daquele abismo. Soube primeiro porque vi sua sombra jogada no centro do meu corpo alaranjado. Falei para Milton, no vácuo da escuta, sem desdém à beira do espelho da calçada: “Quem é você?” preguntei-lhe ao Milton. Minha voz era o eco daquele silêncio com que ele me presenteava sempre que eu o interpelava.

Uma menina deteve-se. Levantou o olhar, nos vendo. “Nós somos o que os outros…” Milton me abraçava, e eu dentro dos braços dele, também o agarrava, “… de nós, desconhecem”. Eu sorri para ela. Milton se desenroscou. Ela ia, acho que sorrindo.

O sol se apagou na noite. Minha sombra desapareceu da calçada. O eco da casa deshabitada gritava. “Milton…” eu disse garguejando, colocando os dois pés no chão “… não entendi isso direito.”

 

Milton, minha paixão

… e Milton parou de dizer.

Eu senti o oco no silêncio daquele sentir. Ninguém no mundo podia abraçar aquela nossa solidão. Nem nos mesmos se abraçar, podíamos, porque tudo em nos, se alfinetava num raro ferir.

Milton era meu mais sincero avesso de ser. Minha dor. Meu tesão.

Eu queria ir lá, trás sua sombra fosca, e sem dor abraçá-lo até me fundir em nos dois. Mas ele recusava qualquer contato, não fosse ele quem o procurasse. Assim ficava difícil amar o ser, trás a pele daquele homem, diante de mim.

O amor por ele me doía, transformado numa lágrima límpida que corroia o meu rosto, furando veredas de mágoas conhecidas. Ele mesmo, nem sequer percebia, que enquanto mais ele sofria, eu por ele, mais me apaixonava.

A nossa sombra; pregada em paredes corroídas, em batentes de portas sem saída, em noites de infinitas solidões, era a luz que incendiava o meu destino.

Milton chorava. Eu sorria.

“E do que é que você está rindo?…” ele quem me perguntou, enquanto lacrimejava o oceano daquela saudade. Eu não tive coragem de falar, e nem de mais rir “…diz aí, o que foi?”

O amor perdido de Milton

Milton olhava, janela afora, lembrando a despedida atroz de outro amor. Um silêncio que me apertava o peito, e espalhava dores pontiagudas entre a pele e ossos, sem ter o que fazer por ele. Ou por mim, que também me despedia.

Ela era uma lembrança, fantasma de alheias sensações, entre o amar e sofrer. “Tudo que a gente ama, também desata a mais triste emoção…” ele cuspia palavras ao vento, chutava socos na minha direção como se tentasse me responsabilizar “… você precisa aprender.”

Eu era vítima daqueles olhos que ele amava. Daquela voz que o encantava. Da pele sedenta, das coxas úmidas, da sua fome, da sede. Eu a desejava, e também sofria, mas Milton não me escutava.

“Esquece o sorriso…” ele zangava, choroso, negava o nome e sua ausência, “… não quero saber dela…” eu renegava sua convicta certeza, “ … olvida-a”.

Milton fechou a janela, a cidade e a memória dela ficaram do outro lado da vidraçaria fosca. Ele andava com olhos molhados, os lábios murchos, o semblante tosco. E caminhou em direção de meus olhos, me olhando “… você também a ama?”

Ele acenou me agredir, nervoso, perdido… “caraio, achei que podia confiar em você” e eu, calei meus sentires, entregue ao amor por ele, amando ela e de mim, devendo, minha própria felicidade.

Ele se ajoelhou… chorando.

Eu fui lá, procurar ela, para me despedir.

Prazer é meu, Demis

em dias de definir-se politicamente, semanas de se definir pelos afetos, meses de escolher entre estações e liquidações, dentre planos e seguros de vida, entre nomes de filhos que ainda não tive, entre escrever ou esquecer minhas memórias, sou somente um fóssil de mim mesmo, um camaleão de muitas peles e tantos outros eus que desconheço: sou este eu petrificado em pedra que hoje me apresento: um prazer te conhecer, Milton!

Seduzindo Milton

Milton garimpava roupas e máscaras para despedir o verão no melhor estilo. Eram tecidos rasgados, todos fora de moda e sem passar. Alguns com mau cheiro de pouco usar. “Falae, ficou bom, não ficou?” ele perguntava enquanto eu queria entender o por qué daquele proceder.

Nos últimos dias havia exagerado no pão com manteiga, nas cervejas, e no pouco dormir. Pendurava olheiras escuras sob o olhar e um sorriso desgastado. O cabelo estava ressecado e desbotado.

Milton me apressava para ficar pronto. Íamos juntos numa festa de uma amiga tal, onde a diversão e a esbórnia eram garantidas, as bebidas e a comida bastas, e até havia uma piscina aquecida. “É hoje que a gente não volta sozinhos…” soltou seguro, ajeitando a gola da camisa, e me olhando fixo através do espelho “… .

Chegamos naquela casa amiga fantasiada de Hollywood; mulheres esbeltas e homens sarados, todos numa finura clássica, com raros sotaques e inusuáis jeitos de vestir. Era a extrema representação da beleza e a sensualidade humana, “coisa estranha essa de se fingir de outro alguém…” martelou Milton ainda abismado com os olhares que recebia ao encontrar de frente com alguém.

Eu o observava distante, meio envergonhado meio desinteressado. De fato quem olhava para ele, também me enxergava a mim.

A música acariciava as salas, e os corpos dançantes se misturavam em gestos e formas de distinto agir. Milton executava seus próprios únicos movimentos, que eu insistia em repetir do lado de fora, perto da piscina aquecida. Era certamente bizarro, sobretudo porque era ele quem mais se divertia, girando no chão, dando pulos sobre as poltronas e sofás, jogando a bebida sobre si.

O resto das pessoas parou para observar, numa sinfonia de estupefata adoração ou de sinuosa inveja. Os mais robustos se acercaram para lhe chamar atenção. As meninas se afastaram. Milton fez-me um sinal “a felicidade é a ponta de uma faca no centro de alheios corações… “ eu lia seus lábios, que sorridentes, no mais intenso tesão, proferiam estas palavras “… e somente quem almeja é quem pode ser feliz”.

Era um absurdo tentar  conte-lo enquanto gargalhava. Eu me vi, dentre dos braços deles, sendo arrastado para fora do evento.

Éramos dois felizes sem causas.

Eu perplexo. Ele alheio.

À sombra de Milton

 

Milton caminha entre desconhecidos quaisquer. Em silêncio, passa sem chamar a atenção. Ninguém o olha.

Tampouco, ninguém olha para mim.

“Entre os outros…”  e ele aponta ao chão, à sombra amorfa de nós “nem mesmo nosso breu fica parecido”.

Diante daqueles, formávamos incríveis figuras que desenhavam outras distintas maneiras de ser, e nossas linhas, eram inimagináveis e imprevistas.

Milton continuou a brincar de descobrir outras imagens “olh´aqui, não parece muito com um camaleão?” que ele insistia em me fazer ver “veja bem, não é mesmo um deus nórdico?”

Eu assentia ou negava apenas para não deixá-lo falar sozinho.

“Nossa, vendo aquilo que belo…” diz-me surpreso, ao ver minha nova sombra misturada ao corpo singelo de uma moça que atravessou entre nós.

Depois, Milton se afastou. Continuou andar entre outras tantas pessoas que passavam por ali. “Uuuh, agora foi quase…” gritou-me depois de tentar apagar nos outros, o gesto discreto de nós.

A noite, enfim, diluiu a frustrante agonia de uma sombra esticada sobre o concreto vertical de um prédio. Ele firmou o olhar no último laranja acendido no seu rosto.

Eu era a sombra perfeita que ele precisava, e que também, desconhecia.

O novo ano de Milton

Pelas frestas das janelas, o murmúrio de alegrias alheias inundava o neutro sorriso do Milton. Ele degustava um cigarro, um som qualquer na rádio, e no copo esquentava uma cerveja. O olhar fitado numa sombra, avesso impresso da árvore, lá fora no quintal de casa, e agora invadindo a parede de dentro.

“Quer fazer um brinde?” pergunto-lhe a Milton, alçando meu copo gelado, tentando celebrar alguma alegria nossa. Eu sorria da cumplicidade do encontro.

Eu e ele à sombra da árvore: afora, avessa; aqui dentro, escura.

“Um brinde…” cuspe Milton, e engole a cerveja dele, “… nos merece mesmo isso” e levanta o copo em direção de mim, vazio.

“Muita saúde…” eu aproximo o meu, “… para nos” e batendo os copos, fito meu olhar no dele, e no mesmo instante, escutamos a explosão de um fogo de artifício e o copo cai da minha mão, fazendo aquele barulho úmido no chão de vidro quebrado.

“A Terra dando mais um giro entorno do Sol…” Milton murmura enquanto eu cato os cacos; ele dá um gole direto da garrafa de cerveja. “… e nos dando mais uma volta entorno de nos”.

Estouraram mais uns fogos em seqüência. Uns cachorros latiam. A alegria alheia transbordava dentro, as avessas da sombra da gente. Rara essa maneira de comemorar o fim de algo na linha infinita do tempo, nessa rara infinita forma de nos.

Milton e Demian, e um café-da-manhã para três

Poucos antes de acordar ouço os gritos sem eco do Milton «é serio que comeram as bolachas amanteigadas…» era ele longe e dentro de mim » a goiaba madura e o último pãozinho francês?». Era dureza essa fome dominical no acalanto do lar de nos três. 

Eram o excedente da festança da nossa solidão: tudo exato, frugal, necessário. Eu comia por ele, só as vezes. Quase sempre Milton que se alimentava de mim. Eu teimava de acreditar naquela fina justeza. Tudo nosso: para nos.

Milton pressentiu uma rara injustiça «alguém vai ter que repôr…» ele vociferava sem ter com quem implicar «… cadê aquele baixinho, é papá?«, procurava nos cantos ocultos, as sombras esconderijas, «eu vou te achar, nené» as pegadas sorrisos ou as mãozinhas delatoras daquele pequeno infrator.

«Foi você, eh malandrinho» Milton descobrira nosso filho sob a cama, preparando o maior banquete: especiais pães na chapa, frutas várias cortadas, leite quente no justo café ou no achocolatado, suco fresco de tangerinas. Eu no mesmo impulso, também vi tudo aquilo. E a ele. Do sorriso dele, escondido sob o grande colchão, um minucioso convite para nossa satisfação.

Demian servia café nas três xícaras. Uma para Milton, sem açúcar. Para mim, somente um pingo de leite. Para ele, basto chocolate no leite sem café.

Em silêncio o domingo avançou sob a nossa cama. Brincamos de comer sem desistir, destino tríplice de sermos feliz.

«E aí papae…» Milton respondeu com o silêncio do seu mastigar «… você gostou do lanchinho que eu fiz para você?» Eu sorria olhando pro Demian, num acerto de perfeito reflexo. Pai e filho: Nos três.

Dei-lhe um beijo e o opaco do Milton também nos beijou.

Pai é filho.

Demian era o sol do domingo, razão de nos: Ser.

 

Milton e seus discípulos

Milton apaga a lousa como quem apaga meu rosto de um espelho, a poesia não tem tempo… no fundo aparece um verde fosco, e ainda os restos mórbidos de outras palavras que ele esboçara com uma certeza vácua … esse é o inimigo maior do poeta.

Do lado oposto da sala, dez ou mais discípulos, se surpreendem com o método. Alguns versos jorrados através das janelas. O grito de outros poetas ecoados na voz dele. Um pulo na parede. Um deitar no chão. Um rasgar de folhas rabiscadas.

“Nada me interessa da poesia alheia…” somente eu não me surpreendo com seus gestos, as mãos avoando, o farelo de papel fantasiado de purpurina branca “… cada um que cuide de sua insólita loucura”.

Os discípulos mascaravam elogios, o orgulho de presenciar tamanha tertúlia do ego em retórica poética do maldito. Eu era o principal refém daquele giz que transmutava sensações em palavras, como se fosse também meu, todo aquele universo egocêntrico que ele praticava.

Mas eu não o negava, essa mesma vaidade agasalhava-me nas geadas das noites solitárias, no exercício cotidiano do ser diante dos outros, no percurso singular daquele nosso existir.

Ali diante daquelas palavras que insistiam em se reescrever e se apagar na esverdeada lousa, eu sentia uma solenidade estupefata, razão do sentir de nossas ambas mãos desenhando as emoções de um fantasma.

“Vocês ai…” Milton gritara no seu afã  de discurso, “ninguém aprenderá nada com suas palavras…”  eu certificava tudo aquilo no gesto frio de um diretor de orquestra de câmera “… e ninguém se importará jamais com o que vocês falam” era triste e sublime o ensinamento no rosto apático dos discípulos, aqueles dez o mais escritores de poucas façanhas.

Eu, que diariamente penava o poeta, confirmava com o giz branco na mão dele, “o que vocês escrevam… “ e na outra mão nossa, aquele gesto altruísta e necessário “… como a mesma dedicação o apagam”.

A cidade do Milton

Milton ia no vagão do trem. Sentado, observava a cidade passar através da janela. Ele, e eu frente a ele. Sozinhos.

Afora, o frio estreava um inverno longe dos outros. A brisa dava sensação do despir de um abraço, que se apagava num adeus definitivo. Tudo impregnava melancolia.

“As pessoas todas… “ disse Milton e eu olhei, vi centos, pisquei vi outras duzentas, “cada uma delas… “ a cidade avançava na janela, milhares ou milhões de pessoas “… sabe exatamente aonde está indo”.

Era o existir dos outros. Ele e eu éramos apenas testemunhas daqueles rascunhos de gente no vidro empoeirado.  A miúda verdade de que cada um tem em si, o poder de escolher.

“E nós?” ele olhava nos meus olhos, os meus nos dele, de nós “… sabemos aonde é que vamos?” O clarão do olho dele, avermelhou. O meu, de puro reflexo, cintilou.

A certeza dele, era também a minha certeza? O caminho? As nossas verdades divididas? As utopias? Procedimentos? As palavras? Eram nossos sentimentos igualmente perceptíveis? E os sonhos?

O trem deteve-se numa estação não muito distante. A porta abriu-se. Ninguém entrou. Nenhum de nós, desceu.

Os trilhos levavam a um só destino, apesar das escolhas, dos amanheceres, das despedidas, havia somente um caminho, para nós.

Milton vagou pelo vagão vazio. O barulho do trem nos ferros silenciou nosso afastamento. Tudo era ínfimo do outro lado do vidro: o mundo, os encontros, a poesia.

O poente avançava sobre a cidade laranja. A próxima seria a última estação daquela viagem.

Milton pôs a cabeça para fora, e gritou “descemos?” o trem ia nos seus trilhos, “ … ou voltamos?”