lajes, varandas e quintáis

a roupa boiava na água escura, sujeira de dias convivendo cotidianos com minha pele, meus gestos, meus suores. no tanque mecânico, elas giravam fazendo espuma, liberando instantes passados no ar da memória.

minha mãe que gritava, no fundo do ouvido “posso lavar essas suas roupas?”. ela sabia do minha predileção por panos gastados, tecidos ungidos de mim e minhas andanças “não mãe, pode deixar” mas ela ao fim lavava, escondida de mim e contrária aos meus desejos.

a roupa cheirava novos destinos, outras estórias por ver e viver. um odor de uma fragância letárgica, ou quase plástica. roupa limpa é como uma manhã sem orvalho, ou sem companhia.

eu lembrava. revivia.

eu esfregava com minhas mãos os tecidos, este agora de roupas melancólicas. “o sol gasta as cores” dizia dona Juana, “pendure-as do avesso” e assim eu aprendia “brancas primeiro, logo depois as coloridas”.

cló pendurava as roupas respeitando suas cores. ou mesmo o cumprimento das calças e as camisas. colocava o arco-íris no varal, prendendo-o, até que uma noite pueril o apagava. eu sentava-me ao lado, apenas inesperando a próxima peça para ser pendurada.

as roupas grudavam em mim, como histórias perenes, como a própria pele. e eu me gastava. me rasgava ao vento da vida. destingindo-me com o sol que me secava em lajes, varandas e quintais.

minha segunda pele pululava.  dentre minhas próprias mãos ou dentre as de quem me abraçava. estica e encolhe. soltei as costuras que me prendiam. a pele caia, sozinha, enquanto eu caminhava.

hoje faz sol. a memória clareia. as roupas no varal secam-se. eu estico minha pele do lado da sombra. não falta mais nada, somente o orvalho da próxima manhã ou minha própria companhia.